O cafajeste!


Carioca da gema, morador do morro Dona Marta, negro e sambista com orgulho. Esta seria a introdução perfeita para qualquer prefácio sobre Jorginho do pandeiro, rapaz de sorriso frouxo, porte alinhado e dono de uma simpatia capaz de contagiar de felicidade aqueles com quem se deparava. Jorginho era o típico moleque arteiro, porém trabalhador desde a infância, período no qual começou a auxiliar seu pai nas feiras da cidade. Às quatro da manhã, era apenas mais um Jorge e já podia ser visto a descer a ladeira de sua rua, cantarolando canções de Jorge Ben Jor seu cantor favorito, uma herança cultural deixada pela sua falecida mãe e também a explicação para o seu nome. Todavia, além do nome em pouca coisa Jorge assemelhava-se ao cantor, já que este Jorge a fama não abençoou, sequer era flamengo e tão pouco dono de um fusca, mas ao menos com o aconchego de uma nega chamada Teresa nosso Jorge podia contar.
Já no domingo e nos dias santos, após a pelada era no bar do Sivuca que a marmanjada sentava pra festejar. Primeiro uma cachaça para o santo e depois se ouvia de longe o zoado do pandeiro. Salve Jorge, novamente, a empolgar! Logo, na efervescência do samba, se esqueciam todos de seus maiores problemas. E assim do pagode no Sivuca ninguém ficava de fora, havia estrangeiro que se admirava, mulher casada que sambava e, de vez em quando, um bate boca no final pra esquentar. Todavia, antes que a casa caísse Jorge partia com seu pandeiro na mão rumo à casa de sua amada, sua adorada Teresa. Logo, ao encontrá-la o roteiro fazia-se sempre o mesmo, esporo, abraço e beijos.
_ Teresaaaa!
_ Já, falei pra tocar a campainha, Jorge! Que cheiro de cachaça e esse?
_ Hoje é domingo, dia da rapaziada no Sivuca, nega!
_ Sivuca, pagode... E depois quer me proibir de desfilar pela minha escola!
_ Chega disso, nega, te fiz uma canção.
_ Tá Jorge, entra logo, vamos aproveitar que a mãe deu uma saída.
Sob uma chuva rala e um frio atípico devido à proximidade da mudança de estação, taciturno, Jorge recolhia sua barraca de feira e observava os seus companheiros a realizar a contabilidade do dia. Chegava ao fim o evento que ele julgava ser o maior espetáculo de bom humor e sobrevivência da face da terra. E assim, aos poucos, aquele coração ritmista colocava as dificuldades de lado, e apesar do baixo lucro começava a planejar um churrasco para o fim de semana. Festa grande farta em vinho e cerveja, nada de cachaça ou carne barata, afinal, a grande data era merecedora de tal luxo, seu aniversário de dois anos de namoro, dia no qual pediria a mão de Teresa.
Ao chegar a casa, tratou logo de informar ao pai a sua nova resolução.
_ Festa tudo bem, meu filho, mas casar! Você é jovem e além do mais devia aprender uma profissão. Não devia ter deixado você me seguir nas feiras, era pra aprender com seu Tio Sérgio e hoje em dia seria pedreiro de mão cheia!
_ Mas, o seu filho já tá bem crescidinho, pai. Tá decidido!
Feito o comunicado Jorge saiu à procura de Ramiro, amigo de longa data, e também o dono de uma velha brasília que com certeza suportaria mais uma viagem a fim de levá-los as compras no mercado.
Ao som de Cartola e Bezerra da Silva, distraídos, os amigos retornavam ao morro. Em alguns trechos da estrada o trânsito apresentava lentidão, no entanto, naquela noite nada parecia roubar-lhes a calmaria. Sim, estavam com o coração repleto de ansiedade e contavam as horas para o churrasco de domingo. Urgia celebrar a vida, valer-se do samba para renovar em cada coração do morro a euforia de estar vivo.
_ Pois é o Jorginho vai se casar!
_ E a festa vai ser lá no terreiro, já falei até com a mãe Ana.
_ É, vai lotar. Jorginho, a gasolina tá acabando! Tem dez pratas?
A velha brasília já se aproximava do posto, entretanto, foi preciso parar, respeitar o sinal.  Afinal, há sempre na vida algum sinal para nos fazer parar ou mudar de rotar! Sinal vermelho, trinta segundos usurpados da viagem, todavia, sem saber Jorge perderia mais.
_ Olha só, Ramiro... Que carrão importado esse aqui do lado! O que será que tem que fazer para andar num carro desses?
_ Isso é coisa de artista, Jorge!
Por coincidência ou golpe do destino, logo, após o comentário de Ramiro os vidros fumados daquele símbolo de status se abrem e através de uma sórdida revelação Jorge obtém a resposta para sua pergunta.  Ao lado do motorista, um senhor de idade avançava que ostentava cordões de ouro, podia-se ver Teresa, sorridente, vestida de rainha de bateria e nada incomodada com as mãos enrugadas que acariciavam suas pernas torneadas de mulata. Pouco antes que o sinal torna-se a abrir seus olhos castanhos cruzaram com o olhar espedaçado de Jorginho, porém ambos permaneceram inertes, mudos. Mais alguns segundos e sinal verde, tempo de prantear.
_ Pois é, Ramiro... É coisa de artista!
_ Jorginho...
_ Só me leva para o Sivuca.
Degustando o amargo da ingratidão, desolado, Jorge segue com Ramiro até o bar, após rápida barganha realiza a troca de suas cervejas por bebida gelada. Naquela noite, ninguém ouviu o zoado arteiro do pandeiro, mas sim um canto bêbado e melancólico.
Nos dias seguintes, Jorge sequer saiu de casa para ir trabalhar, confinado em seu quarto, recusava-se a comer e passava as tardes a compor as mais lindas canções de lamento. Fora em seu exílio que com o auxílio de uma velha revista aprendera algumas notas no violão. Que árdua tarefa seria esquecer Teresa e compreender o porquê de daquela traição, justo com ele que atendia sem relutar a todos os caprichos da mulata. Todavia, não há males que durem para sempre, logo, devido à insistência do pai Jorge começou a reergue-se... Cortou o cabelo, alinhou a barba, retornou ao trabalho e até economizou dinheiro a fim de comprar uma viola.
Numa sexta qualquer Jorge tornou-se senhor de sua vida, olhou-se no espelho e aprovou as novas vestes, camisa e calça social branca, chapéu de malando. Sim, nascia ali o novo porta-voz do morro, um malandro da lapa, cafajeste convicto! O Rio recebia em alvoroço as apresentações de Jorginho do pandeiro e sua banda.
A cada dia o prestígio de Jorginho subia, logo, ao final do show era sempre o mesmo reboliço, mal Jorginho agradecia os aplausos e já tinha de lidar com o assedio da mulherada. Fato este que chegava a despertar a inveja de muitos dos seus ditos companheiros, porém nosso sambista não se importava com os obstáculos de sua crescente fama. Pelo contrário, usufruía toda atenção que lhe era dada, e, numa mesma noite, podia ser visto a desfilar com três mulheres diferentes.  Apesar dos rumores de seu jeito cafajeste não havia um alvo que Jorge deixasse escapar. Aos poucos, Jorginho tornou-se o maior objeto de desejo das senhoras abastardas, das estrangeiras, das loiras e até das morenas. É claro que a todas fazia mil declarações na cama, mas, raramente, cumpria com a simples promessa de ligar no dia seguinte
Já os domingos ainda eram reservados ao lazer com seus companheiros do morro, e assim sempre após as peladas seu paradeiro continuava o mesmo, o bar do Sivuca. Porém, agora gozando de nova fama Jorginho era enaltecido pela galera, todos comentavam seus feitos, vangloriavam suas conquistas. Porém, ainda assim Jorge tinha de lidar com o olho gordo de alguns! Certo domingo um infeliz solitário chegou até a desafiá-lo!
_ Jorginho, depois que levou chifre da Teresa virou o homem das mulheres!
_ Homem das mulheres? Que nada... Talvez você seja porque agora elas que são minhas e eu de mais ninguém!
_ Cheio de graça, Jorge! Tá se achando, só pega vagabunda... 300 pratas se pegar mulher direita, quer ver catar a Lena beata.
_ Fechado, vou te deixar liso, malandro!
Subitamente, o novo comentário do morro, novamente, era sobre a nova mudança de Jorginho. Alguns diziam que havia abandonado o samba, que o viram entrar, aos prantos, num culto de libertação da igreja. O chapéu de malandro não fazia mais parte de seu vestuário, trocara a pelada pelo ensino dominical e o bar do Sivuca pelo culto noturno. Durante a semana, costumava ser visto, na praça da cidade, comprando pipoca e conversando com seus amigos de congregação. Finzinho de noite seu compromisso era na casa da Lena, menina santa, estava determinada a instruir Jorginho na palavra.  Logo, bastou um mês nessa rotina para que Jorginho pudesse receber o valor da aposta. Pobre Lena fora desvirtuada pelo malandro e de vergonha trancou-se em casa e numa mais fora vista na igreja.
Nosso malandro já estava há um ano a lotar os bares da lapa, o sucesso de seus shows, agora, repercutia nas gazetas culturais. Foi nesta época que Jorge recebeu duas visitas inesperadas, a primeira extremamente agradável foi de um produtor musical que decidiu investir em seu projeto e desejava gravar o seu vinil. Neste dia, Jorge dava pulos de alegria, finalmente, fora reconhecido, enfim poderia largar a feira. À noite a comemoração seria particular, apenas Jorge e seu pai, porém subitamente tocou a campainha. Quem poderia ser?
_ Teresa?
_ É... Só vim te parabenizar pelo sucesso!
_ Claro!
_ E a escola de samba?
_ Não posso mais dançar, o médico disse que é por conta de um problema no joelho.
De repente, outro golpe da vida, Jorge encontrava-se imóvel diante daquele fantasma do seu passado. Maldita Teresa, o que diria a ela? Jorge sentia-se absolutamente incomodado, afinal, um ano após a traição ele tornou a procurá-lo só que agora os papéis estavam invertidos. Não havia muito que pensar, sendo assim Jorge deixou que Teresa entrasse, juntos os dois beberam vinho, relembraram momentos do passado e, inevitavelmente, terminaram na cama. Contudo, desta vez Jorge não podia vacilar já sofrera demais no passado por amor, estava seco! E assim, logo, que amanheceu o dia Jorge levantou-se, tinha um compromisso em um Studio musical! Antes de sair olhou para Teresa e decidiu deixar um bilhete, que dizia mais ou menos assim “Não me procure mais, vadia. Vai procurar o teu velho, já era. Eu sou a nova promessa do samba aqui”.
As gravações saiam em ritmo acelerado, em breve, o vinil de Jorge estaria nas lojas. E assim neste clima ameno Jorge dava continuidade a sua vida, agora, já era convidado a tocar em casas maiores, seu sucesso com as mulheres permanecia o mesmo. Todavia, fora neste período que Jorge conhecera Suzana, mulher fogosa, dona de longos cabelos perfumados. Um verdadeiro convite a paixão, no entanto, havia um impedimento. Suzana era casada e tinha receios de deixar o marido (rico empresário)! Apesar disto os encontros prosseguiram, contudo, Jorge não deixou de dar atenção as suas outras admiradoras. Logo, consciente da vida dupla de Jorge Suzana, extremamente, possessiva armava sempre as maiores brigas.
_ É claro que não deixar o que você chama de vida boêmia! E você deixa o seu marido?
_ É que...
_ Quer saber, me deixa dormir! E no dia seguinte se alguém vai deixar alguém serei eu!

Imediatamente, após a discussão Jorge virou-se para o lado, estava farto do amor, mas ainda assim colocou um vinil do cartola, na vitrola, e adormeceu, foi sonhar com o seu samba em outras mil vitrolas. Todavia, este sonho jamais se realizou, Jorge não acordou no dia seguinte, fora assassinado por Suzana, que possessiva não aceitou a ideia de perdê-lo. Ainda hoje há quem diga que Jorge, na verdade, fora vítima de seu estilo de vida, mas no bar do Sivuca também há quem diga “que foi tudo por causa de um coração, um coração partido”.

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