O caminho da rosa.


Aquela tarde um imenso calor expandia-se, seu contorno adquiria vida nas faces aflitas da estação, na interminável impaciência na fila da bilheteria. Eram estes e outros os incômodos banais daquela gente conturbada, sempre às pressas, rumo a alguma estação. Todavia, apesar de tanto agito desnecessário encontrava-se ali uma alma inerte, carente de uma dose mais forte de emoção. Seus pés já haviam perdido a conta dos anos em que se encontravam ali enraizados! A única viagem que lhe era permitida era inventar histórias para os passageiros da estação, contemplar as capas das revistas abandonadas em frente ao canteiro. Ah, e como lhe agradava ler as manchetes sobre países, capitais distantes... Paris, torre Eiffel, Brasil, Rio de Janeiro, pão de queijo mineiro.  Às vezes, Rosa chegava até a invejar a liberdade natural das plantas que se estendiam pelas montanhas no horizonte! Infelizmente, para ela destinara o destino apenas os limites do canteiro da estação e a angustiante visão de tantos sempre em eterna chegada e partida! Depressão, solidão...
Todavia, numa dessas tardes enquanto Rosa ocupava-se de compor um roteiro de vida para uma senhora aflita uma força abrupta a surpreendeu. Muito embora não fosse a memória a sua melhor faculdade seria impossível esquecer tal experiência. Contudo, lembrava-se apenas do avental branco que trajava aquele senhor de olhos puxados, lembrava-se de ouvi-lo em uma discussão engraçada ao telefone. Depois disto o que se viu fora apenas violência, não uma violência premeditada, mas um romper de suas raízes com o solo, um esvair-se abrupto como uma falta de ar. Rosa desmaiou! Logo, ao acordar percebeu que seu dia chegara, pois estava em sua primeira viagem de trem. Teria Deus ouvido suas preces? Disto Rosa não tinha certeza, no entanto, estranhou o fato daquele senhor vestir um avental com a ilustração de um vistoso arranjo de flores!
À medida que seguiam viagem Rosa sentia-se tomada por espasmos, estava fraca, porém a alegrava ver tantas paisagens em movimento pela janela. No fim chegaria ela ao céu? É fato que suas pétalas já começavam a murchar e sua visão tornava-se mais escura a cada estação.  E enfim, veio o fim, uma parada final, um som confuso da frenagem dos vagões, sons de passos... E enfim, Rosa acordou, logo, soube que não voltara do céu, apesar de ver tantas flores no local. Sua quase morte, o mistério das flores no avental, tudo logo se desvendou... Rosa já havia lido sobre isto, nas revistas empoeiradas da estação, estava apenas em uma floricultura. Consciente de sua beleza não custou para que encantasse a mulher do floricultor, uma linda asiática, logo, Rosa ganhou lugar de destaque e fora levada ao apartamento do casal. Tornou-se jóia rara, e como artigo de luxo fora transferida para um belo vaso decorado.
Entretanto, apesar de tantos mimos Rosa não custou para sentir-se desconfortável naquela casa. Já que as energias que circulavam por aquele apartamento não eram as melhores.  Afinal, não havia um dia sequer no qual uma discussão de proporções catastróficas estourasse. E quase sempre o estopim da discórdia era o mesmo, a dependência alcoólica do floricultor, que, rotineiramente, às 20:00 horas costumava chegar a casa embriagado e descontar suas frustrações profissionais dando um boa surra em Aíko, sua esposa. Logo, minutos antes de sua chegada a tensão já se instalava no local, Aíko apressava-se para colocar as crianças para dormir, porém quase sempre elas acordavam espantadas com os inúmeros gritos de fúria do pai. Já, Aíko costumava suportar tais disparates calada, às vezes, até tentava iniciar uma conversa, sempre sem êxito. Diante de tantas desavenças parecia uma missão impossível para Rosa ser feliz naquele lar. Logo, suas pétalas começaram a murchar e seu vermelho vivaz a cada dia tornava-se mais opaco! E assim Rosa chegou a sentir saudades da estação e de seu passatempo de inventar histórias. Pobre Rosa, caíra em profunda depressão, tornara a sonhar com suas viagens pelo mundo, afinal, esta era sua única válvula de escape.
Certo dia, ao presenciar uma discussão Rosa desejou ter braços para ir ao encontro do floricultor e lhe dar uma boa sova como advertência. Todavia, cismou de fazê-la apenas uma rosa inquieta! Ainda assim naquela noite Deus se manifestou... Bem, ele não deu braços a Rosa e salvou Aíko de seu tormento, mas ele direcionou a cólera do floricultor e o fez atirar o jarro de Rosa pela janela. De certo, a queda a fez lembrar-se do frio angustiante de sua experiência de quase morte, todavia, sua queda fora aparada por um contêiner de transbordando de lixo em um beco abaixo da janela lateral do apartamento. E assim como pediu a Deus Rosa estava livre, perdida, abandonada em um beco sujo, longe demais das belas capitais de seus sonhos, mas ainda assim livre.
E assim na penumbra de um fim de tarde tosco, o perfume de Rosa misturava-se ao mau cheiro do ambiente. De fato o local não era dos melhores frequentados, de quando em quando, visitavam-na ratos e moradores de rua que revolviam o lixo à procura de comida. Todavia, apesar daquele clima de esquecimento Rosa manteve suas esperanças, logo, uma leve garoa surgiu como que para purificar o local. Rosa já começava a sentir frio quando, subitamente, uma jovem de aparência cansada que fumava um cigarro veio ter com ela.
_ Nossa, pelo visto alguém não te queria mesmo. É você vem comigo, te arranjo um novo vaso e você me acalma as noites! É... Acalma...
E deste modo a estada de Rosa no contêiner de lixo chegou ao fim, todavia, ela sentia uma áurea pesada a envolver aquela moça, seus olhos eram claros, mas sombrios como o mais profundo abismo, seu maquiagem borrada e seu corpo coberto de tatuagens. Contudo, Rosa estava cansada e precisava de abrigo, por isso se permitiu cair no sono.
Pela manhã, Rosa já acorda em seu novo vaso, bem mais modesto do que o anterior, porém extremamente confortável. Rosa encontrava-se em uma sacada, certamente, fora posta ali para pegar sol, sua terra também fora regada. Todavia, de todos os prazeres o maior foi ter, novamente, uma vista para a rua, observar as pessoas transitando. Não custou para que Rosa reencontra-se sua salvadora, desta vez a garota estava acompanhada de algumas amigas, todas com de semblante igualmente cansado e trajando poucas vestes. Curiosa como toda dama Rosa colocou-se a prestar atenção na conversa das garotas.
_ E aí como foi o movimento ontem, mulher?
_ Bom, mas tive que suportar aquele cliente.
_ Aquele?
_ É...
Após estas palavras um enorme silêncio tomou conta daquela sacada, uma a uma as garotas foram se dispersando, adentrando em cômodos internos do apartamento, ou, se distraindo a ver TV no salão principal. Sem muitas opções de distração Rosa tornou a exercer seu hobby principal, inventar histórias para os transeuntes que seguiam abaixo na rua.
À noite logo caiu, e com ela o apartamento, aos poucos, foi recebendo novos ares! A neblina de suor e descanso deu lugar a uma efervescência erótica, e todo salão iluminou-se de luzes foscas e vermelhas. E assim embalado por um som acalorado e pulsante o salão encheu-se de estranhos convidados, todos homens e, geralmente, bêbados. Reuniam-se ali a fim de observar as garotas que se colocavam a dançar num palco. Viam-se ali tantos risos e abraços maliciosos, porém todos sem amor. Após certo tempo, os homens recolhiam-se com um das garotas para um aposento interno e depois partiam suados e saciados, com suas panças protuberantes a saltitar. Asco, pavor foi tudo o que Rosa conseguiu sentir! Todavia, tentou resignar-se aquele local, apesar da tristeza que sentia ao presenciar tais cenas. Afinal, o ambiente não se diferenciava tanto da casa do floricultor, pois de quando em quando uma briga costumava estourar, em sua maioria eram provocadas por homens bêbados, drogados.
E assim noite após noite Rosa ficava a adornar aquele antro amoral, deprimia-se ao ver Alice, sua salvadora, drogando-se junto com os clientes, ouvindo desaforos. De fato, aquele ambiente começava a cansar Rosa, seus únicos momentos de lazer eram a tarde quando a rua enchia de pessoas comuns e ela podia criar suas histórias, sonhar com imensos jardins e países distantes. Lugares povoados pelo amor, repletos de histórias de encontros, dramas, desencontros, todavia, povoados de amor.
Contudo, às noites insistiam em trazê-la de volta àquele ambiente hostil do prostíbulo. Entretanto, nesta época, Alice tentava recuperar-se, havia deixado as drogas e numa tarde de verão surpreendeu Rosa ao levá-la até seu quarto e deixá-la de frente a janela. Naquele quarto, Alice recebia apenas os seus clientes mais “íntimos”, vários deles idiotas como tantos outros que Rosa já havia visto. Todavia, um deles chamou a atenção de Rosa, um rapaz tímido e franzino que costumava contratar os serviços de Alice apenas para conversar, tarefa que Alice cumpria bem. Sentava-se à beira da cama e ouvia os problemas do rapaz, quase sempre eram assuntos relacionados às dificuldades de seu emprego e a indiferença da mulher pela qual se encontrava apaixonado. Rosa admirava-se do talento de conselheira de Alice, mas, no fundo, torcia para que Alice e o rapaz simpático se apaixonassem e a levassem dali.
Agora, no abafado das tardes Rosa já não se ocupava de inventar histórias para os pedestres, mas sim ficava a imaginar como seria a visita do rapaz ao quarto. No entanto, os tempos, novamente, tornavam a mudar. Alice havia voltado a consumir drogas e se encontrava tão debilitada que mal podia manter conversas lúcidas com Pedro, o rapaz franzino. E assim o inesperado anunciou-se em uma das visitas de Pedro, que descontente com o estado deplorável de Alice decide ir embora mais cedo.
_ Melhor eu partir, Alice. Aqui pelo programa, por me ouvir sei lá!
_ É, tudo bem, cara. Que isso, cara, não tinha nota menor?
_ Não, pode ficar com o...
_ Não, quer saber... Toma aqui, leva essa Rosa e presenteia a tua garota, seja homem. Faça uma surpresa!
Desta vez, Rosa encontrava-se diante de outra partida, ansiosa, até gostaria de encará-la como um divisor de águas, no entanto, a vida não se fez como uma novela. Pois, a seguir vieram dias e noites de frio, onde entregue ao desânimo Rosa já começava a esquecer-se de seu antigo sonho. Agora, apenas permitia-se assistir ao lamentável espetáculo de Pedro, que completamente desajeitado ensaiava em frente ao espelho as palavras que poderia dizer a sua amada. E estes foram os dias de sequidão, tempo de devastação e esquecimento.

Todavia, chega um dia em que até a mais maldita sina se entrelaça em seu fim. Fora num destes domingos sem graça que Pedro revestiu-se de coragem e partiu, às pressas, para casa de Júlia, sua amada. A princípio as palavras engasgaram, o rosto ruborizou-se, as mãos ficaram úmidas, mas Júlia aceitou a Rosa como presente e o convidou para entrar e tomar um café! Só um cafezinho, uma breve parada para o início de grandes viagens, pois não custou que houvesse um segundo encontro, desta vez eles decidiram assistir a um filme “Para Roma com carinho”. Pronto, subitamente, ali estava Rosa completamente fisgada pela magia das telas, a diante do mundo, de novas histórias, das mais belas capitais! Fora um longo suspiro, afinal descobrira-se, seu sentido para vida tão somente adornar uma sala de estar, uma paixão alicerçada de arte e carne! Quanto à mania de Rosa inventar histórias? Bem, isto fica para uma próxima!

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