Generosa.


Dentre tantos quintais na A.V Kennedy Carla orgulhava-se de cultivar o melhor gramado, suas cercas pintadas, trimestralmente, luziam a delicadeza de seu esmero. Seus arbustos eram podados com perfeição artística por Juan, seu marido, seus cães de raça refinada exibiam pelas ruas o requinte de sua educação adestrada.
 Todavia, eram nas tardes de domingo que Carla incitava inveja em suas amigas ao desfilar aos risos com Juan pelas ruas. Ah, e como eram prazerosas suas caminhadas, sem contar nas gargalhadas dadas no regresso de seus incontáveis passeis! Sucesso, prestígio, nada os faltava. Pois, gozavam juntos dos mesmos deleites, desfrutavam do feliz vigor de sua meia idade bem vivida, de fato viviam o auge de seu esplendor físico. E riam de seu riso boquiaberto a cada conquista de seu belo casal de filhos.
Entretanto, talvez por conta de um destes tropeços do destino, ou, quem sabe da língua de trapo de suas infelizes amigas, logo, uma centelha de insatisfação instalou-se no peito de Carla. Poderia a vida ter sido tão generosa com ela? 
 Dias após tal reflexão Carla obstinou-se a caçar uma desgraça qualquer que os astros tivessem reservado. E assim, diariamente, passou a acompanhar o seu horóscopo, todavia, até mesmo a imensidão do espaço parecia ter lhe concedido paz. No entanto, insatisfeita, Carla decidiu provocar seu patrão o importunando com sugestões incabíveis. Novamente, falhou em sua tentativa, foi promovida! Mas, persistente, nossa heroína decidiu fazer um check up a fim de diagnosticar o fim de sua vida a arrastar-se, sorrateiro, através de um câncer maligno. Porém, novamente, dera um tiro na água, pois sua saúde encontrava-se em perfeito estado! 
Pois é, sendo assim Carla resignou-se a crer que todo o seu desespero não devia passar de um desses assombros de meia idade! A razão era única, entre tantas guerras, mazelas e desventuras espalhadas pelo mundo quisera a vida ser generosa com ela. Logo, pensou baixinho, bem baixinho, até com certa vergonha...
_ Pois é... Só pode ser! Quis a vida ser generosa comigo!
 Deixados de lado os devaneios de sua afetação ela tratou de por um belo sorriso no rosto e se pôs a preparar o café dos filhos. Desfilou para o espelho, ajeitou suas longas madeixas louras, chegou até a destinar certo tempo apenas para apreciar o canto dos pássaros. No entanto, subitamente, fora o golpe furtivo de uma simples SMS que roubara a sua paz. O remetente? Juan, seu marido, apenas a notificar que tardaria um dia a voltar de viagem por que suas reuniões de negócios foram inconclusivas!
 E fora assim como o badalar macabro de um sino à meia noite que Carla visualizou seu triste destino. Afinal, o que mais poderia ser? Nada, apenas um simples fato, estava sendo traída. Nesta manhã, Carla não levou os filhos ao colégio antes de ir trabalhar na clínica odontológica. Pelo contrário, decretou feriado em sua casa, faltou o serviço, contratou uma babá para vigiar as crianças e saiu pelas ruas sem destino. Precisava espairecer e avaliar os fatos... Pois é, a vida não poderia ser madrasta com tantos e tão generosa com ela! Mas, logo com ela, mãe dedicada, esposa devota e companheira! De qualquer modo agora estava justificado o motivo de tantas viagens de Juan! Certamente, não certamente não, de fato havia outra!
 Naquela tarde, Carla vasculhou as gavetas do marido a fim de encontrar alguma evidência, todavia, nelas não havia nada que o incriminasse. Afinal, Juan não poderia ser tão burro, logo ele que por muitos era considerado um gênio estrategista! E assim restou a Carla sair sem rumo. Foi ao shop, mas fazer compras já não mais a satisfazia. Visitou uma igreja, mas lembrou-se de que a muito havia enterrado Deus.  Então a quem recorreria? Chegou a estacionar o seu carro sobre a maior ponte da cidade a fim de suicidar-se, mas e seus filhos?
 Resignada de que não lhe restavam soluções ela retornava a sua casa a imaginar a vergonha pela qual passaria após a dissolução de seu casamento. E assim fora, justamente, neste instante que Carla surpreendeu-se com mais um desses badalos da vida... Seu carro deu pane em frente a uma agência investigativa! E apesar de julgar-se movida pelo desespero Carla encarou-se no retrovisor do carro e chegou à conclusão de que se a vida lhe preparou esta nova surpresa talvez  quisesse apenas que ela averiguasse melhor os fatos! E assim Carla adentrou a loja e contratou os serviços de espionagem. Tão logo que Juan retornasse de sua viagem o detetive garantiu que o seguiria dia e noite e apresentaria a ela qualquer evidência do delito! Que alívio, Carla retornou para casa menos sobrecarregada!
 Porém, nos dias que se seguiram à medida que crescia a sua ansiedade aumentava o seu afastamento do marido. E assim, aos prantos, Carla detonava garrafas e garrafas de uísque! Quando questionada por Juan apenas respondia em tom embargado que se tratava de uma crise nervosa provocada pelo estresse no emprego! Aos poucos, Carla abandonava a imagem da mulher confiante e esbelta que já fora. Em seu lugar a substituíra um pálido reflexo de uma mulher de cabelos desgrenhados, e unhas ruídas pela obsessão. Como se já não bastasse o detetive Carla ainda dava continuidade as suas buscas nas gavetas, agendas telefônicas, etc. 
 Todavia, fora numa tarde de sexta que Carla recebera a tão esperada ligação do detetive particular!
_ Alô, Sra. Carla!
_ Sim, até que enfim... Pode falar, estou...
_ Bem, Carla estamos entrando em contato para notificá-la que após um mês no encalço de seu marido não encontramos nenhuma evidência capaz de incriminá-lo.
_ Que isso, mas é impossível... 
_ Senhora, caso queira podemos enviar os registros da investigação para que possa constatar por si mesma!
_ É claro que quero, mas vocês devem ter deixado escapar alguma coisa, incompetentes...
_ Consideramos o serviço entregue, boa tarde, senhora!
 Logo, ciente de que havia sido enganada Carla decide sair para considerar as suas opções. Afinal, de certo fazer algumas compras não a faria mal. 
Horas depois, munida de seu melhor vestido Carla desfila pelo shop a fim de se restabelecer. Em meio a um entra e sai de lojas, a cada vestido comprado sua auto estima revigorava-se.  E fora durante este despretensioso transitar que Carla sente-se novamente querida, após ser alvo de uma cantada esdrúxula de um segurança de loja. E assim, por alguma razão até então desconhecida Carla sente-se tentada! Seus tornozelos vacilaram e roubaram a firmeza de seu caminhar, sem contar com aqueles estranhos espasmos em suas partes íntimas. Quando deu por si, novamente, encontrava-se no banheiro do shop numa voluptuosa entrega de seu corpo! Estaria a se vingar da possível traição de seu marido? Bem, isto Carla não sabia, sabia somente que se sentia livre, desperta, querida!
 Horas depois, fora com o riso mais descontraído do mundo que Carla encontrou-se com Juan. Adentrou a sala de sua casa com um passo imperial, deu um beijo nas crianças, ajeitou suas madeixas louras em frente ao espelho e disse:
_ Juan, acho que deveríamos sair para jantar! Passar a noite fora. Por quê não liga para babá?
_ É, mas você sente-se...
_ Liga.
 Já no restaurante, apreciaram o melhor vinho da casa e convesaram com o entusiasmo de um jovem casal de namorados, afoitos por se conhecerem melhor. Incomum era vê-los sérios. Ao término da noite seu destino fora certo, um conceituado motel de luxo da cidade. E assim Carla amou o marido como não fazia a meses, esperneou, estremeceu as taças do bar com seus gritos de orgasmo.
Todavia, no dia seguinte, aquele estranho vazio a incomodava! Logo, o café em família tornou-se insoso, e o timbre da voz do marido insuportável. Após a saída de todos restou a Carla aventurar-se em mais um de seus passeios. E deste vez seu amante fora um motorista de taxi, num chaqualhar selvagem no banco traseiro do carro. E enfim, Carla sentiu-se, novamente, livre e pode retornar a sua casa para assumir o papel de esposa apaixonada e mãe dedicada.
 E nos dias seguintes Carla cumpriu seu rito de vaguear pela cidade em busca de músculos palpáveis afim de se atritar com os dela. E assim fora amante do jornaleiro, do dermatologista, do pedreiro do prério vizinho e até mesmo do bebum largado no sinal! Incontáveis foram seus urros de prazer, já que em nenhum instante sentiu-se indigna. Pelo contrário, julgava necessitar destes escapes de prazer para tolerar a fatídica realidade... Casa, esposo, contas, filhos, trabalho... Pois, apenas deste modo Carla sentia-se feliz e inclinada a deitar-se com Juan.
 Logo, não tardou para que se invertessem os nós das línguas daquela gente, velhacos nas filas e nas calçadas a lamentar seus anos perdidos e amaldiçoar a vida alheia. E fora num destes mornos fins de tarde que Carla encontrou suas roupas amontoadas no quintal. Pois é, Juan descobrira seus delitos e pelo visto não se encontrava para conversa. Ao lado das trouxas uma ordem judicial que Carla sequer se encorajou para abrir! E fora assim assim tão, de repente, que sua redoma de vidro quebrou, ao seu redor apenas olhares gélidos e brados condenatórios.

_Puta! Puta, puta, puta...

  Restou a nossa "heroína" recolher o básico e fugir... Correu, correu, aos prantos correu!
 Ruas e ruas depois ancorou-se num destes botecos da vida e amaldiçoou cada cantada barata que recebeu! Afinal, com que cara veria seus filhos novamente? Que moral teria? Logo, ela que havia sido tão afortunada pela vida! De maquiagem borrada e salto quebrado Carla dirigi-se a uma pensão no subúrbio da cidade, pede um quarto com frigo bar, seca mais algumas garrafas enquanto destila o seu choro! O que mais poderia fazer? Tivera tudo e jogara fora por apenas sentir-se viva nos braços da orgia... tantos braços. E assim de imagem borrada, família perdida Carla se precipita até a janela do apartamento! Sim, estava disposta a dar cabo de sua vida, porém, exatamente, neste instante que o vento cumpriu seu papel de carteiro. Trazido por uma leve brisa um destes folhetos religiosos invadiu a sacada e sua mensagem dissipou a angústia de Carla.
_ " Aquele que ajudar a um de meus pequeninos estará ajudando a mim. Por isso, dese generosos e doe o que tiveres de melhor e deste modo se multiplicará sua honra e jamais lhe faltará o pão"
Num súbito arrepio Carla se recompõe e num espasmo de deleite conduz sua mão ao seu órgão genital e sussurra:
_ Dupla honra, jamais me faltará o pão... Generosa... Puta não, generosa!

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