Raimundo e o pé-de-bode.

Os pés descalços persistiam, estavam convencidos a deixar o calor escaldante do sertão baiano. Já que após tantos anos de peleja Raimundo cansou-se de viver as mazelas do interior. Pois, fato é que desgraça pouca é que não era, afinal, ao longo de seus sessenta anos o velho sertanejo presenciou de tudo. Viu as margens do riacho secarem, o sol rachar a terra, o gado emagrecer, e, lentamente morrer de sede e fome. Raimundo, Raimundo, banguela, magricela, que soluçou, chorou, berrou ao ver a mulher amada morrer de cólera. Raimundo que ainda assim lutou pela terra, orou a Deus, mas a chuva não veio e, aos poucos, viu os filhos deixarem o sertão, migraram para cidade grande.
_ Sebastião já foi, pai... melhor levantar parede do que pelejar nesse sertão. A benção, pai?
_ Deus te abençoe, filho!
Pois é, e assim a cada dia tornou-se árdua a lida na zona rural de Euclides Da Cunha, maldito sertão. Mas, Raimundo mantinha ainda a esperança, de certo o governo iria ajudar. E não é que o governo ajudou mesmo, de repente, chegou por ali a tal de irrigação! Água vinda de longeeee, dentro de uns canos pra molhar a plantação. E assim, logo, o gado ficou gordo, viçoso que só, e Raimundo fez vasta plantação, deu festança com direito a viola e tudo. E foram dias de uma felicidade danada, afinal, Raimundo estava lucrando nas alturas. Mas, quando finalmente, Raimundo conseguiu vencer o sertão cansou-se dele! Sim, já era tempo de se aposentar, e por isso Raimundo vendeu o gado, vendeu a terra e deixou o sertão. Mas, não se enganem que foi pra foi longe, permaneceu em Euclides Da Cunha, apenas mudou-se para cidadezinha. Pois, Raimundo tinha medo das minhocas de metal e do trânsito das cidades grandes, para ele bastava só tomar cachaça, no barzinho, jogar porrinha e se engraçar com alguma rapariga, afinal, agora tinha dinheiro, sua casa nova até era de alvenaria.
E assim com muito descanso e assobio na rede da varanda Raimundo tocava os dias. Admirava-se com o canto dos pássaros que se exibiam livres nos galhos das árvores do quintal. Sim, a vida era simples, mas ainda assim depois de tantos anos de labuta no sertão aquela era a vida que pediu a Deus. De luxo mesmo Raimundo dava-se apenas três mimos: andar a cavalo, ouvir o Repórter Esso, à noite, em seu rádio novo (presente enviado de SP por um dos filhos), e é claro duas doses de água ardente no bar do Geraldo. Local este onde Raimundo costumava frequentar ao final das tardes. Não que depois de velho tivesse virado pinguço, já que apreciava mais encontrar os amigos e trocar dois dedos de conversa. Sem contar que este era o horário no qual Dona Lucinda (viúva de quarenta anos) voltava a casa após o trabalho. Ah, como era bom sonhar com a volúpia daquelas ancas! De certo em breve Raimundo a teria, bastava que ela soubesse de suas economias, de seu cavalo forte e seu rádio novo.
Mas, justamente quando a vida parecia ter apenas sorrisos para Raimundo “num” é que a desgraça veio a galope. Pois, se me lembro bem foi num desses “finzinho” de tarde quando o sertanejo retornava do bar risonho que só (recebera um olhar de D. Lucinda) que o tinhoso fez-se presente pela primeira vez. Diabo arteiro, colocou o velho Raimundo para correr da encruzilhada o enganando com a ilusão de um cavalo “louco” a persegui-lo pela estrada. Mas, depois de tanta correria ao pular, às pressas, o portão de casa e olhar pra trás o velho arrepiou-se por não ver nada.
_ Vixe, nossa senhora, mas cadê cavalo?
Logo, ainda encucado com o ocorrido Seu Raimundo decide colocar um boa panela de feijão no forno para acalmar-se, afinal, nada melhor do que um rango forte para recompor os nervos.  Porém, assim que o velho levou a primeira colher a boca deu logo uma cuspada, pois o feijão estava mais do que salgado. Foi então que pela primeira Raimundo ouviu aquela voz renitente.
_ Tá gostando?
_ Mas, que brincadeira é essa? Geraldo, foi você? “Num” se esconde não danado que se eu te pego!
_ Aqui não tem Geraldo nenhum, velho!
_ Então se mostra qual é teu nome, desgraçado?
_ cramulhão, sete-peles, beiçudo... satanás!
E nesse instante, como reza a lenda a panela de feijão voou e acertou a cabeça do velho Raimundo.
Dias depois, enquanto Raimundo esforçava-se para crer que todo o ocorrido não passou de um devaneio de bêbado alguém vai alertá-lo, no bar, que sua casa parecia estar pegando fogo. Imediatamente, Raimundo pôs-se a correr a fim de salvar seu lar, ao chegar a casa teve de se esforçar para apagar o fogo que já se alastrava do colchão de sua cama até o restante dos móveis. Por sorte auxiliado pelos amigos Raimundo não teve grandes dificuldades para apagar o fogo, mas assim que o povo deixou a casa o azar ergueu sua voz.
_ Tá gostando?
Ao ouvir tais palavras o velho Raimundo, imediatamente, caiu em desespero.
_ Diacho de alma penada, o que quer comigo? Se é missa de que carece mando já rezar.
_ Carece não, velho! Chorando, que isso!
Logo a seguir em tom deboche o tinhoso começava a cantar.
E assim após ser incomodado várias vezes com as peças pregadas pelo tinhoso Raimundo começou a perder o ânimo, já não era visto andando a cavalo, já não frequentava o bar. E o pior de tudo é que começou a correr pela cidade o boato de que Raimundo estava ficando louco e que afirmava estar sendo assombrado pelo coisa-ruim. Todavia, apesar de fama de louco havia ainda uma pessoa em Euclides da Cunha que acreditava em Raimundo. Querem saber quem? Dona Lucinda, que ao ouvir as queixas do amigo não tardou a convidar um vigário para rezar a casa.
Pois é, se me lembro bem foi no dia de santo Expedito que o vigário compareceu à casa de Raimundo. Orou dois pais nossos em frente ao portão e pôs-se a aspergir água benta por todo o quintal. Mas, para quê? Justamente, quando se aproximava da porta de entrada o padre Bento foi expulso a pedradas da casa de Raimundo, e o povo todo que assistia tal de exorcismo danou-se a correr. Dona Lucinda até que tentou convidar o vigário a retornar à casa, mas este recusou-se de imediato.
Raimundo, Raimundo, banguela, magricela, já não dormia há dias sofrendo com as artes da assombração. Foi quando, novamente, Dona Lucinda se compadeceu do amigo e decidiu enfrentar o belzebu entrando na casa de Raimundo com a foto do papa. Afinal, papa é figura santa, mais do que padre! Mas, ainda assim de nada valeu e Dona Lucinda também foi expulsa a pedradas da casa. Desde tal dia Lucinda nunca mais voltou a falar com Raimundo. Pobre Raimundo, ficou só, já não recebia carta dos filhos, sequer se animava para ouvir o Repórter Esso.  Pois é, Raimundo apenas resignava-se a comer o feijão salgado e a ouvir a mesma maldita música.
“O jardineira porque estás tão triste, mas o que foi que te aconteceu. Foi a Camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu”.
 Anos mais tarde, já não se ouvia mais falar de Raimundo pela cidade, o pobre havia se tornado apenas uma lembrança vaga. Reza a lenda que foi num desses “finzinho” de tarde que o tinhoso cansado de atormentar o velho atirou com força uma pedra em seu joelho. Dias depois, a gangrena o levou a óbito. E todos na pequena Euclides Da Cunha viram o pássaro negro que levantou voo do telhado do velho Raimundo e disse:
_ Nesta terra não volto nunca mais!

  














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